Jéferson Cappellari


A saúde mental do advogado deixou de ser um tema secundário. Hoje já está claro que algo profundo acontece no cérebro de quem atua no direito: um desgaste silencioso, acumulado dia após dia, que não é surpresa para a neurociência. A rotina jurídica, cheia de prazos, conflitos, expectativas e decisões que não podem dar errado, mantém o sistema de ameaça do cérebro ligado o tempo todo. A amígdala — a parte que detecta riscos — passa a reagir como se cada detalhe fosse um perigo iminente. Dean Burnett descreve como o estresse prolongado faz o cérebro enxergar mais ameaças e ficar em estado de alerta constante. Robert Sapolsky complementa lembrando que fomos feitos para lidar com estresse rápido e pontual, não com esse “gotejamento” diário de pressão que define a vida do advogado. Quando o estresse vira rotina, aquilo que antes ajudava a sobreviver passa a destruir. É como se o advogado vivesse, biologicamente, numa savana cheia de predadores — mesmo sentado diante do computador.

Esse modo de sobrevivência ligado o tempo todo bagunça o eixo HPA, responsável por liberar cortisol. O corpo recebe doses constantes de hormônios do estresse, o organismo entra num estado de alerta que nunca desliga e os neurônios começam a perder eficiência. Sapolsky mostra que o estresse crônico literalmente remodela o cérebro: áreas importantes diminuem, enquanto a amígdala fica cada vez mais disparando alarmes. Na prática, isso significa que o advogado não só se sente pior — ele pensa pior. A memória falha, a concentração oscila, o raciocínio fica mais lento, as decisões se tornam mais impulsivas e a empatia diminui. Não é questão de disciplina. É o cérebro reagindo ao ambiente.

Humberto Maturana ajuda a ampliar essa compreensão. Para ele, toda ação humana nasce de uma emoção — inclusive aquelas que chamamos de “racionais”. Ou seja: não pensamos apesar das emoções. Pensamos a partir delas. Isso significa que o estado emocional influencia diretamente a forma como o advogado interpreta situações, organiza argumentos e analisa estratégias. Ambientes tensos reduzem criatividade e limitam possibilidades. Para Maturana, o medo reduz o espaço de ação. E numa rotina onde o medo de errar, falhar ou decepcionar é constante, nenhuma técnica jurídica compensa um cérebro emocionalmente contraído.

Juntando Burnett, Sapolsky e Maturana, o quadro fica claro: a amígdala hiperativa cria hipervigilância; o estresse contínuo esgota neurônios e derruba motivação; o pensamento negativo automático se instala; o repertório emocional diminui; e, por fim, o profissional busca alívio imediato — comida, álcool, estimulantes, trabalho excessivo, qualquer coisa que reduza a tensão por alguns minutos. Esse ciclo não é moral. É biológico e relacional.

O problema piora porque a cultura jurídica reforça crenças incompatíveis com o cérebro humano: “aguenta quem é forte”, “sucesso exige sacrifício constante”, “disponibilidade total é sinal de competência”, “descansar é para os fracos”. Esses padrões criam ambientes que elevam ainda mais a sensação de ameaça e estreitam o funcionamento emocional — exatamente o oposto do que gera pensamento claro e decisões éticas. Não surpreende que tantos profissionais adoeçam ou abandonem a carreira. Muitas vezes não é o advogado que falha; é o ambiente que destrói sua biologia.

Mas há caminhos possíveis. O primeiro é reduzir estímulos de ameaça criando rotinas previsíveis — horários definidos, limites de comunicação, rituais claros de começar e terminar o dia. O cérebro adora previsibilidade. A segunda estratégia é usar pausas curtas ao longo do dia. Como mostra Sapolsky, micro-pauses de dois a cinco minutos ajudam a “resetar” o sistema do estresse. Levantar, respirar fundo, mudar de ambiente — tudo isso ajuda mais do que parece. Outra ação poderosa é cultivar relações de confiança. Para Maturana, confiança amplia o espaço emocional de ação e reduz o medo. Conversar, compartilhar dificuldades e criar vínculos profissionais saudáveis melhora a forma de pensar.

Também ajuda ajustar a linguagem interna. A forma como o advogado conversa consigo mesmo altera seu estado emocional. Trocar “Se eu errar, acabou” por “O que posso controlar agora?” tira o cérebro do modo ameaça e devolve clareza. Além disso, estabelecer limites reais — horário para parar, dias mais leves, controle sobre notificações — é essencial. O cérebro não foi feito para viver em alerta 24 horas. Por fim, incluir pequenas práticas de regulação emocional, como respiração profunda, caminhadas rápidas, alongamentos ou um minuto de silêncio intencional, acalma a amígdala e melhora a lucidez.

A conclusão é simples: a advocacia precisa de cérebros protegidos, não esgotados. O estresse jurídico é real, mensurável e altamente destrutivo. Ele muda o corpo, altera o cérebro e distorce a percepção do mundo. Emoções fazem parte da prática jurídica — sempre. Nenhum advogado consegue atuar em alto nível com um sistema nervoso em colapso. Cuidar da saúde mental não é luxo, moda ou frescura. É necessidade prática, ética e intelectual. É neurociência aplicada ao direito.


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